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Fortaleza Recebe A Revolução do Afeto de Nise da Silveira: Uma Imersão na Cura pela Arte
Por Redação FutFortaleza em 29/11/2025 16:23
A "mania de liberdade" que moldou a vida da renomada psiquiatra Nise da Silveira, uma vez expressa por ela após um período de aprisionamento, ressoa hoje com uma força singular em Fortaleza. Sua trajetória singular, marcada pela convicção de que a arte pode ser um poderoso agente de libertação para a mente humana, agora se materializa na capital cearense através de uma mostra de grande impacto.
A exposição ?Nise da Silveira ? A revolução do afeto?, inaugurada em 25 de novembro na Caixa Cultural Fortaleza , é mais do que uma retrospectiva; é um convite à reflexão sobre a humanização do tratamento psiquiátrico. A mostra homenageia a mulher que desafiou paradigmas, transformando a realidade de pacientes em um dos mais significativos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro.
Fortaleza Acolhe o Legado de Nise: Uma Imersão Artística
Organizada em diversos núcleos temáticos, a exposição estabelece um diálogo entre o passado e o presente. Ela exibe obras do icônico Museu do Inconsciente, fundado por Nise em 1952 para abrigar a produção artística dos internos do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, e criações de artistas contemporâneos. Este encontro de épocas e estilos sublinha a perenidade do pensamento de Nise.
Entre os talentos que compõem a "revolução do afeto", destacam-se nomes como Carlos Pertuis, Fernando Diniz, Adelina Gomes, Emygdio de Barros e Arthur Amora, todos ex-internos do hospital, cujas obras são apresentadas ao lado de produções de Rafa Bqueer, Tiago Sant?Ana, Abraham Palatnik, Lygia Clark, Leon Hirszman, Margaret de Castro, Carlos Vergara e Zé Carlos Garcia. A curadoria, a cargo do estúdio M?Baraká, com consultoria do museólogo Eurípedes Júnior, reuniu 157 obras de 11 artistas, proporcionando uma imersão sensível e poética que se estende até 1º de março de 2026.
O primeiro segmento da mostra desvenda a biografia de Nise e o contexto histórico que impulsionou sua metodologia. Única mulher entre 157 formandos da Faculdade de Medicina da Bahia nos anos 1930, sua vida foi marcada pelo ativismo político. Casada com o sanitarista Mario Magalhães, Nise foi detida durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, período em que estabeleceu contato com figuras como Graciliano Ramos, Olga Benário e a sufragista Maria Werneck, que lutou pelo direito ao voto feminino no Brasil. Essa vivência no cárcere, sem dúvida, reforçou sua "mania de liberdade", que se tornaria a pedra angular de sua abordagem terapêutica.
A Trajetória Disruptiva e Humanitária de uma Pioneira
Foi na década de 1940 que Nise iniciou sua jornada no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, mais conhecido como Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Neste cenário, sua atuação pioneira se entrelaçou com a de Dona Ivone Lara, cuja contribuição como enfermeira e assistente social é menos divulgada. Juntas, elas introduziram a música como um recurso terapêutico, evidenciando o poder curativo da expressão melódica.
Inconformada com as práticas desumanas da época, como lobotomia e eletrochoques, Nise buscou alternativas. Sua visão a levou a criar um ateliê de arte, incentivando os pacientes a explorarem as profundezas do inconsciente por meio da criação. A interpretação dessas produções por parte dos médicos, combinada ao próprio processo criativo, revelou-se um tratamento de eficácia notável. Essa abordagem foi ainda mais fortalecida pela amizade e troca de correspondências com o renomado psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que impulsionou suas pesquisas.
A exposição, com pinturas, desenhos, fotografias, gravuras, esculturas, documentos e recursos audiovisuais, convida o público a reavaliar o conceito de "loucura" por meio de um resgate histórico que une arte e saúde mental. Além disso, durante o período de exibição, estão programadas atividades como visitas mediadas, palestras e oficinas, bem como o lançamento do livro ?Do asilo ao museu: Nise da Silveira e as coleções da loucura?, escrito pelo consultor da mostra, Eurípedes Júnior. A intenção é que os visitantes, ao entrarem em contato com a vida e obra de Nise, compreendam a profundidade de seu método revolucionário, pautado em escutar, acolher, sentir, perceber e libertar.
O Legado Antimanicomial e a Visão Crítica de Especialistas
Para além de sua dimensão artística, ?A revolução do afeto? provoca importantes debates políticos, históricos e sociais, que permanecem extremamente relevantes, especialmente no âmbito da luta antimanicomial. Ronaldo Pires, psicólogo e militante ativo do Fórum Cearense de Luta Antimanicomial, destaca a pertinência da exposição para aqueles que enfrentam diariamente os desafios da rede de atenção psicossocial. "E é uma inspiração para todos que compõem a rede de saúde mental, de usuários a familiares", afirma ele.
Pires enfatiza que o trabalho de Nise da Silveira rompeu com a lógica excludente da psiquiatria tradicional. "Onde o discurso psiquiátrico hospitalocêntrico via impotência, via déficit, a Nise via a potência dessas pessoas", analisa. Segundo o psicólogo, a médica alagoana estabeleceu um olhar radicalmente distinto sobre os indivíduos em sofrimento psíquico. "Ela viu múltiplas possibilidades de ser entre essas pessoas que eram isoladas da sociedade e vistas como não-pessoas, como não-humanos", observa, ressaltando como essa mudança de perspectiva é crucial para atualizar a compreensão social da "loucura" e fortalecer os princípios da luta pelo fim dos manicômios.
"Ela lutou contra um sistema de práticas desumanizantes e que empreendia violência. A prática dela é revolucionária, no sentido de que ela rompe com esse paradigma de exclusão, de negação da palavra, da singularidade das pessoas com sofrimento psíquico. Esse rompimento se expressa no resgate da criatividade", conclui Ronaldo Pires, sublinhando a essência transformadora do legado de Nise.
A Arte como Psicofármaco: O Testemunho de José Crispim
A "revolução pelo afeto" de Dra. Nise, como era carinhosamente chamada, estende-se e toca profundamente aqueles cujas vidas foram diretamente impactadas pela saúde mental. O artista plástico José Crispim, de 66 anos, uma figura central no movimento antimanicomial no Ceará, é um desses exemplos. Ele superou internações psiquiátricas através da arte e se emociona ao falar da psiquiatra: "Posso dizer que sou uma semente que ela plantou e que germinou".
O legado de Nise se materializou em sua vida nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). "Quando eu cheguei no Caps, depois de passar várias vezes pelos manicômios, foi lá que as pessoas descobriram um talento que eu tinha. Foi então que conheci as artes plásticas", relata Crispim. Desde então, ele utiliza sua arte como uma ferramenta de militância e transformação, sendo inclusive indicado ao Prêmio Nise da Silveira, da Câmara dos Deputados, em reconhecimento à sua notável trajetória.
A filosofia de Crispim é um eco direto dos ensinamentos de Nise: "A arte, para mim, é o melhor psicotrópico. E não há efeito colateral. A prova disso é que eu me dediquei totalmente à arte e não faço mais uso de psicotrópico. Hoje o meu psicotrópico é a arte. A arte liberta e a liberdade cura", expressa com convicção. Ele descreve o processo criativo como um espaço íntimo de profunda expressão: "Eu me sinto em outro mundo, porque ali na arte eu estou jogando todos os meus sentimentos. E eu considero a arte a minha melhor amiga, porque ela guarda segredos. Só eu e ela sabemos o que eu estou sentindo naquele momento".
Desafios Persistentes e a Urgência de Investimentos na Saúde Mental
Apesar dos avanços teóricos na política de saúde mental, José Crispim avalia que ainda persistem resquícios do modelo manicomial. "A mudança foi muito pouca. Os maus tratos continuam", denuncia. Ele cita como exemplo o trágico caso de um paciente que morreu por estrangulamento no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Messejana, em julho de 2022, enquanto estava internado por crises de esquizofrenia. "Muitas famílias não vão atrás, não voltam na Justiça e fica por isso mesmo", lamenta, expondo a fragilidade do sistema.
O artista aponta a falta de investimentos adequados como um dos principais obstáculos para mudanças mais profundas e efetivas. "Eu lamento que nossos governantes não investem na saúde mental como deveriam, ou seja, com artistas, educadores e com materiais terapêuticos. Porque se nós tivéssemos material terapêutico dentro dos serviços, a história hoje seria bem diferente. Muita gente voltaria para o convívio social e ao convívio familiar", reflete Crispim, reforçando a necessidade de uma abordagem mais humana e criativa para o tratamento do sofrimento psíquico.
Exposição "Nise da Silveira ? A revolução pelo afeto": Detalhes
| Item | Detalhe |
|---|---|
| Local | Caixa Cultural Fortaleza |
| Período | Até 1º de março de 2026 |
| Obras em exposição | 157 |
| Artistas representados | 11 (incluindo internos e contemporâneos) |
| Curadoria | Estúdio M?Baraká |
| Consultoria | Eurípedes Júnior |
| Atividades | Visitas mediadas, palestras, oficinas, lançamento de livro |
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